O acidente do voo 447 enluta não apenas o Brasil, a França e os países que perderam seus filhos nesta dramática tragédia. O acidente cobre com um manto de incerteza para todo o setor. O que teria provocado a perda do A330 e de seus 228 ocupantes? Qual o fator, ou sequência de fatores, que teriam sido os causadores da dor e luto para milhares de pessoas? O que está efetivamente em jogo nos dias, semanas e meses que virão?
A resposta é tão simples quanto maíscula: a própria reputação da aviação como meio de transporte mais seguro, uma posição tão duramente conquistada nas últimas décadas.
Mais do que nunca, é fundamental resgatar do Atlântico, juntamente com os ocupantes, as evidências que levarão os especialistas a encontrar as causas do desastre. Isto começa, porém, com um fato pouco comentado. A tragédia do voo 447 traz à tona um problema detectado em aeronaves da família A330, ocorrido há menos de um ano: uma série de falhas sérias no sistema ADIRU (Air Data Inertial Reference Unit). Ainda é muito cedo para qualquer comentário que não seja meramente especulativo, mas trata-se de um fato que pode estar na raiz da causa do acidente do voo 447.
Os A330 e A340 são equipados com três unidades ADIRU independentes e redundantes, que fornecem aos sistemas eletrônicos os parâmetros básicos que monitoram dados como atitude, proas, velocidades e altitudes.
O sistema já apresentou falhas em dois eventos envolvendo jatos A330, ambos das operadoras australianas Qantas e Jetstar, esta afiliada da primeira. Os dois ocorreram no segundo semestre do ano passado, justamente em altitude de cruzeiro, durante mau tempo, quase provocando desastres fatais.
No primeiro, ocorrido em outubro, um A330-300 com 313 ocupantes voava de Cingapura para a Austrália. Uma hora após a partida, o ADIRU 1 passou a indicar parâmetros errôneos, mostrando que o avião estava em um ângulo de voo diferente do realmente voado. A tripulação pensou que o problema se resolveria se desligasse o ADIRU 1 e acionasse o sistema de back-up, que desconsidera a leitura discrepante dentre as três unidades e valida as duas que apresentam a mesma leitura. No entanto, mesmo com o ADIRU 1 desligado, a falta de sincronia entre os três sistemas fez com que o sistema central da aeronave continuasse interpretando dados equivocados.
Ao invés de considerar os dados dos ADIRUs 2 e 3 como sendo os corretos, o sistema desconsiderou os dados das unidades que funcionavam normalmente e validou como corretos os parâmetros do ADIRU 1, justamente o que apresentava leitura espúria. A informação, repassada automaticamente pelos sistemas eletrônicos de comando, fez com que a aeronave mergulhasse bruscamente. A muito custo, e com grande perícia, o controle foi retomado pelos pilotos. Ainda assim, o sistema voltou a desconsiderar os ADIRUs 2 e 3 e a aeronave mergulhou por uma segunda vez. Novamente, os tripulantes retomaram o controle, declararam emergência e conseguiram pousar. Trinta e seis ocupantes ficaram feridos, 12 deles com gravidade.
No segundo incidente, ocorrido em dezembro último, a falha no ADIRU 1 provocou a desconexão do piloto automático e obrigou a um pouso de emergência, felizmente sem feridos. Considerados na verdade acidentes, embora sem perda total das aeronaves, foram graves o suficiente para provocar um alerta da Agência Europeia para a Segurança da Aviação (EASA). A EASA e a Airbus passaram então a recomendar que os operadores do jato alterassem procedimentos quando em caso de falha destes sistemas.
Em razão dos episódios, a EASA lançou um alerta em janeiro deste ano, recomendando aos pilotos de A330 e A340 para, em caso de falha no ADIRU, não apenas desligá-lo, mas desconectá-lo completamente.
É preciso lembrar ainda que os Airbus têm sistemas de proteção ao voo, conhecidos como "flight protection envelopes", que na prática tratam de corrigir automaticamente "inputs" de comando que possam colocar as aeronaves em risco. O sistema na prática "assume" momentaneamente o comando da aeronave, de maneira a preservar a sua integridade, impedindo por exemplo, manobras bruscas, que excedam limites estruturais que coloquem em risco o próprio voo.
Ainda não se sabe com certeza se houve no caso do AF 447 uma falha no sistema ADIRU, mas uma das hipóteses é de interferência eletromagnética causada por raios e tempestade. Há informações de que o voo da Air France no domingo atravessou uma zona de forte mau tempo, justamente na ITCZ - Intertropical Convergence Zone, ou zona de convergência Intertropical.
Sabe-se porém que, entre 23h10 e 23h14 na noite de domingo, o voo 447 enviou mensagens automáticas de falhas através do ACARS - Aircraft Communications Addressing and Reporting System. Essas mensagens foram enviadas pelo próprio sistema ACARS, que o faz automaticamente para diminuir a carga de trabalhos dos pilotos e agilizar eventuais trabalhos de manutenção quando da chegada dos voos que apresentem panes.
Dentre as mensagens supostamente recebidas pelo CCO - Centro de Controle Operacional - da Air France, situado próximo ao aeroporto Charles de Gaulle, as primeiras informações davam conta que as mensagens indicaram que o piloto automático teria sido desconectado e o avião mergulhado bruscamente. A companhia francesa não confirmou o teor dessas mensagens, nem tampouco se elas dizem respeito a eventuais falhas nos ADIRUs.
A tragédia enluta não apenas as 32 nações com seus cidadãos a bordo. Ele cobre de perplexidade e dúvida toda a indústria, que não tem economizado recursos nem esforços para continuar sendo a mais segura detre todos os meios de transporte. Ainda que o A330 repouse neste momento em águas profundas, de até 4 mil metros ou mais, podemos ter certeza que a grande maioria dos destroços e ocupantes do Airbus terão que ser resgatados de seu túmulo frio e profundo no Atlântico.
Mais do que uma missão de humanitária, de respeito aos mortos e aos seus entes queridos, trata-se de uma missão que visa, sobretudo, garantir - o quanto antes - que sejam trazidas das profundezas as peças e partes do Airbus. É imperioso encontrar as razões que causaram a tragédia do voo 447 o mais cedo possível. Não se trata de apenas encontrar os restos da aeronave e de seus ocupantes. Mais do que a própria reputação do fabricante ou do operador, o que se busca resgatar é a reputação da aviação como meio de transporte mais seguro que existe.
G. Beting
Fonte: Jetsite (http://www.jetsite.com.br/2008_v35/Editorial.aspx)
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