"A aviação é um sistema complexo. Compõe-se de pessoal altamente qualificado, máquinas
sofisticadas, procedimentos operacionais lastreados em tecnologia de ponta, e apoia-se
em infraestrutura que envolve vultosos aportes de capital da iniciativa privada
e governamental, assim como requer mecanismos de incentivo, intervenção e
regulação do Estado.
O número sempre crescente de passageiros e carga
transportados a cada ano e o inevitável congestionamento dos céus sobre os
arredores dos grandes centros têm demandado o contínuo aperfeiçoamento dos
diversos componentes do sistema aeronáutico, visando sua eficiência econômica e, acima de tudo, segurança de voo cada vez
maior.
Como todo sistema decorrente da criação humana, o sistema
aeronáutico tem suas falhas. Ainda
assim, o transporte aéreo é o meio de locomoção mais seguro existente,
considerando-se as extensões dos deslocamentos e a sua velocidade. Isto é tributável sobretudo ao modo pelo qual
a inteligência aeronáutica sempre incorpora à sua enciclopédia de conhecimentos
os aprendizados advindos das investigações de acidentes e incidentes pretéritos,
identificando falhas comportamentais, procedimentais e de material.
No plano jurídico, destaque-se que parte desta fórmula de
sucesso advém de um conceito há muito entronizado no meio aeronáutico, que vislumbrou
a enorme relevância de se valorizar o aprendizado sobre a punição, e a
identificação das causas sobre as culpas.
É claro que, no plano cível, é fundamental que se identifiquem tanto
causas como culpas, para que as devidas reparações a danos possam ser
perseguidas sob a ótica da responsabilidade civil. Todavia, a prevalência da investigação
técnica sobre a criminal torna possível alcançar e colher quantidade muito
superior de informações disponíveis e, principalmente, de atos e fatos relacionados
aos agentes envolvidos, mediante depoimentos, degravações das chamadas
caixas-pretas e vasto arsenal documental que, em sede de investigação criminal,
tornam-se, via de regra, de difícil ou quase impossível acesso à luz da proteção
constitucional de não-autoincriminação, mero receio ou medo de potenciais
testemunhas etc. Como resultado de se
valorizar o aprendizado, experiências desoladoras do passado efetivamente
projetam-se para prevenção de acidentes aéreos no futuro. Tem sido assim a história da aviação e, não
por acaso, como dito, é o meio de transporte mais seguro existente.
Este conceito encontra-se, hoje, espraiado pelas principais
legislações aeronáuticas do mundo, em particular a da EASA[1]
(Europa) e do FAA-NTSB[2]
(EUA), encontrando, ainda, amparo nas diversas recomendações e padrões estabelecidos
pelo Anexo 13 da Convenção da OACI (ONU), da qual o Brasil é signatário[3],
que estabelece, em seu item 3.1: “o objetivo único da investigação de acidente
aéreo deve ser a prevenção de acidentes e incidentes. Não se constitui propósito desta atividade atribuir
culpa ou responsabilidade”.
Neste sentido, a Lei 12.970/14, recém-publicada, e que
introduziu diversas modificações no Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA,
arts. 86 a 92), trouxe mudanças significativas para o sistema de prevenção de
acidentes aeronáuticos no País, na medida em que procurou normatizar algumas
destas noções, de grande valia para o transporte aéreo seguro, mas dignas de
análise mais detida.
A novel lei é produto dos trabalhos produzidos no seio da CPI
da Crise Aérea, que investigou, além do chamado “apagão aéreo”, dois emblemáticos
acidentes aeronáuticos ocorridos no País, tendo recebido contribuições
relevantes de profissionais do SIPAER (Sistema de Investigação e Prevenção de
Acidentes Aeronáuticos) e de diversas Comissões Temáticas no Congresso.
A lei procurou atender à concomitância de investigações de
naturezas diversas, sobretudo a realizada pela Polícia Judiciária. Pelos objetivos perseguidos e pelo natural
maior grau de especialização no assunto, a lei concedeu, além da independência,
também a preferência ao investigador aeronáutico sobre os demais, inclusive no
respeitante ao acesso e custódia de material de interesse da investigação (arts.
88-B, 88-C), e requisição a entidades afins de laudos, exames, autópsias,
documentos etc. (art. 88-G, §1⁰). É de
se ressaltar que, por óbvio, preferência distingue-se de exclusividade.
E, na eventualidade de necessária medida cautelar de busca e
apreensão, ou outras demandas judiciais, por ser o CENIPA (Centro de
Investigação e Prevenção de Acidentes) órgão do Comando da Aeronáutica e,
portanto, da Administração Direta da União, oficiará a Procuradoria-Geral da
União.
Na verdade, em conformidade com as recomendações do já citado
Anexo 13 da Convenção de Chicago, a pretensão é otimizar o trabalho
necessariamente coordenado entre órgãos estatais diversos, cada um com função
igualmente importante. É o que se
depreende, por exemplo, do art. 88-E do CBA, também introduzido pela nova Lei,
que impõe à autoridade aeronáutica a obrigação de colocar especialistas à
disposição da autoridade policial ou judicial mediante requisição, uma vez
preenchidas as condições no mesmo artigo arroladas (incs. I a IV).
Além disto, atribuiu-se aos investigadores aeronáuticos o
poder-dever de manter o sigilo profissional quanto às fontes de informação e
seus conteúdos. É lógico que o sigilo,
aqui, há de ser interpretado no sentido de se dirigir a terceiros estranhos à
investigação, como jornalistas e pessoas
do povo em geral[4]. Por óbvio, o ordenamento jurídico não
contemplaria um sigilo absoluto, onde fossem excluídos do acesso às informações
colhidas a polícia judiciária, o Ministério Público, advogados[5]
etc. Isto seria incompatível com a nossa
ordem constitucional[6]. Trata-se de preceito legal semelhante ao
previsto no art. 20 do CPP[7],
isto é, sigilo funcional que se impõe ao investigador aeronáutico, dada a
natureza complexa e peculiar dos acidentes aeronáuticos, e na medida exata do
interesse em tela da sociedade.
Tudo isto sem prejuízo da obrigação de eventual suspensão da
investigação aeronáutica e imediata comunicação à autoridade policial quando se
constatar a prática de ato ilícito doloso que houver dado causa ao acidente
(art. 88-A, §2⁰; 88-D)[8].
Outrossim, destaque-se a proteção conferida aos “dados dos sistemas de notificação voluntária
de ocorrências” (art. 88-I, §2⁰), sistema inspirado em modelo criado pelo
FAA, ainda na década de 80, onde os diversos agentes envolvidos nas operações
aéreas (pilotos, controladores, comissários etc.) podem trazer ao conhecimento
da autoridade aeronáutica erros e falhas cometidos, que são incluídos em um
banco de dados próprio para fins de pesquisa e prevenção de acidentes futuros.
Mais polêmico, cerne do tema em apreço, é a modificação que diz
respeito às “análises e conclusões da
investigação do SIPAER”, as quais, na forma da nova lei, “não serão utilizadas para fins probatórios
nos processos judiciais e procedimentos administrativos e somente serão
fornecidas mediante requisição judicial, observado o art. 88-K desta lei”(art.
88-I, §1⁰). Já este art. 88-K diz que “Para o uso das fontes Sipaer como prova, nos
casos permitidos por esta Lei, o juiz decidirá após oitiva do representante
judicial da autoridade Sipaer, que deverá se pronunciar no prazo de 72 (setenta
e duas) horas.”.
Talvez tenha pecado o legislador, aqui, pela imprecisão. Em primeiro lugar, fala-se em “análises e conclusões da investigação do
SIPAER”, que se distinguem, segundo a terminologia adotada pela própria
lei, do “relatório final” da
investigação aeronáutica. Além disto,
embora se faça referência a “casos
permitidos por esta lei”, com efeito, nenhuma referência específica existe
a este respeito no Código Brasileiro de Aeronáutica, exceto as normas genéricas
que atinam à responsabilidade civil no contrato de transporte aéreo.
Por outro lado, é desnecessário mencionar que qualquer
interpretação-aplicação desta lei não prescinde de sua orientação segundo os
parâmetros constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa. O que, por sua vez, remeterá a comunidade
jurídica a reflexões acerca dos limites aparentemente pretendidos pela novel
lei. Naturalmente, o debate
argumentativo ínsito a processos judiciais futuros e a inestimável contribuição
da doutrina poderão lançar novas perspectivas sobre o tema.
No direito comparado, tem-se registrado uma tendência cada
vez maior à persecução criminal de dirigentes de companhias aéreas,
engenheiros, controladores de tráfego, mecânicos e pilotos[9]. Mas, é interessante observar que, em alguns
países, como particularmente nos EUA, onde o processo investigativo de
acidentes aeronáuticos de maior monta é minuciosamente detalhado[10],
a investigação também é presidida pelo especialista do órgão de investigação
aeronáutica. E este pode,
discricionariamente, na medida do interesse da investigação, convidar a
participar da mesma diversos agentes do sistema (a empresa aérea, o fabricante,
especialistas diversos, órgãos de representação profissional etc.), que passam
a compor um amplo grupo de trabalho subdividido em comissões diversificadas em
áreas especializadas[11]. Além disto, de grande importância também, são
as audiências públicas, convocadas nos acidentes mais complexos.
A vantagem deste modelo é a maior democratização,
especialização e coordenação no tráfego de informações colhidas e processadas,
maior transparência e controle interno e externo da lisura da investigação e, o
que é mais importante, melhor qualidade do relatório final. Isto também irá necessariamente implicar,
mais adiante, em maior celeridade processual em eventuais litígios que se
seguirão, menor número de impugnações, nulidades etc.
Há, ainda, outras importantes questões merecedoras de
regramento específico. Entre elas, a
que diz respeito à necessária definição da competência para o eventual
inquérito policial entre as diversas polícias judiciárias. Hoje, a Constituição Federal de 88 faz
referência à competência da Justiça Federal para processar e julgar os crimes
cometidos a bordo de aeronaves (art. 109, IX).
Logo, seria a Polícia Federal o órgão competente para a apuração da
autoria e materialidade dos mesmos.
Entretanto, na prática, é comum, muitas vezes pela localização
geográfica, que as polícias judiciárias estaduais, e muitas vezes a polícia
militar, atendam primeiramente ao local do acidente. Além disto, nem sempre um acidente aeronáutico
irá implicar na ocorrência de delito criminal.
Uma opção legislativa seria delimitar a competência funcional
em acordo com o percurso da aeronave pelo seu plano de voo, pretendido ou
executado, se interestadual ou internacional.
Nestes, assim como nos casos de tráfico ilícito de entorpecentes, armas
etc., fosse a Polícia Federal incumbida da investigação. Já no caso de voos intraestaduais,
atribuir-se-ia tal competência à polícia judiciária estadual, de acordo com sua
circunscrição. Isto evitaria que
acidentes de maior monta e complexidade, envolvendo, por exemplo, aeronaves de
grande porte e em voos internacionais, em lugar ermo do País, imponham a
autoridades policiais desprovidas dos recursos necessários atribuição que lhes
é materialmente incompatível.
Seja como for, há muito mais ainda em que se avançar num País
cujos índices de segurança de voo ainda se encontram bem aquém do desejado: independência
política e desmilitarização definitiva da agência regulatória (ANAC); criação
de órgão de investigação civil dotado de mecanismos de proteção à sua
independência funcional; constante e adequado treinamento e aperfeiçoamento dos
técnicos do setor; melhoria dos padrões e práticas operacionais de aviação no
País, sendo, neste particular, de grande importância a contribuição
especializada do know-how das
empresas aéreas e seus profissionais; e a fomentação à criação de unidades de
estudo e pesquisa – think tanks – que
possam revigorar a tecnologia nacional no setor, a exemplo do que já se faz em
São José dos Campos.
São observações a serem eventualmente cortejadas pelo
legislador em oportunidades futuras de seu lavor diuturno de criação e
modificação legislativa. Seja como for,
a nova lei parece caminhar na direção certa para a construção de um ambiente de
segurança de voo mais favorável no Brasil, na medida em que traz à baila pela
primeira vez, de forma direta, a escolha entre opções políticas excludentes
entre si, que são a criminalização em acidentes aéreos e consequente
limitação no aprendizado de experiências pretéritas para a prevenção futura de
novos acidentes, ou a priorização do aprendizado com os erros do passado com
vistas ao desenvolvimento de novos referenciais normativos aptos à melhorar a
segurança de voo no País."
* Artigo originalmente publicado no site Jus Navigandi (http://jus.com.br/artigos/31328/a-nova-lei-12-970-14-e-a-investigacao-de-acidentes-aeronauticos-no-brasil)
** Paulo M. Calazans. Comandante de A-310. Foi piloto nas empresas Varig (B-727, B-744, DC-10, B-767, B-733), Eva Air (MD-11), Ryanair (B-737-800) e atualmente se encontra no Qatar. Possui cerca de 14 mil horas de voo. É advogado e sócio do Escritório Leonardo Lobo Advogados, no Rio de Janeiro. Bacharel em Direito e Mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC/RJ, e Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela UCAM/RJ. Foi professor do Departamento de Direito da PUC/RJ e estagiário concursado no Ministério Público do Trabalho.
[1] European Aviation Safety Agency
[2] Federal Aviaton
Administration/National Transportation Safety Board
[3]
Convenção de Chicago, incorporada em nosso ordenamento pelo Decreto-Lei
n⁰7.952/45, promulgada pelo Decreto n⁰21.713/46.
[4]
Não é incomum, dada a normal curiosidade e a grande atração midiática,
assistir-se, nas reportagens jornalísticas, a conversas entre tripulantes,
controladores de voo etc. em transcrições de CVRs (gravadores de voz da cabine), que, por descoladas de
contexto, levam a conclusões precipitadas da opinião pública sobre
responsabilidades, e que muitas vezes ensejam situações de extrema injustiça e
elevado constrangimento.
[5]
A respeito das prerrogativas dos advogados, veja-se CF, art. 133 e Súmula
Vinculante n⁰14 do STF.
[6]
Const. Federal 1988, art. 5⁰, inc. LX – “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos
processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”;
[7]
Código de Processo Penal, art. 20 – “A autoridade assegurará
no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo
interesse da sociedade”.
[8]
O que já era previsto no item 3.2 do Anexo 13 da Convenção da OACI, acima
referida.
[9]
Segundo estudo conduzido por Andreas Mateou e Sofia Michaelidis-Mateou (Flying in the Face of Criminalization, 2010,
p. 161) , observou-se que, enquanto de 1956 a 1999 (43 anos), registraram-se 27
processos criminais relativos a acidentes aeronáuticos, em apenas 9 anos, entre
2000 e 2009, registraram-se pelo menos 28. Alguns exemplos recentes de
acidentes em voos comerciais que ensejaram persecução criminal: França, Air
France 447, sobre o Oceano Atlântico, em 2009; Grécia, Helios 522, em Atenas,
em 2005; Indonésia, Garuda 200, em Yogyakarta, em 2007; Espanha: Spanair 5022,
em Madrid, em 2008; Turquia, próximo a Isparta, em 2007; aqui no Brasil, o voo
TAM 3054, em São Paulo, em 2007, e o voo Gol 1907, que se chocou com aeronave
privada sobre o Mato Grosso.
[10]
Veja-se o Code of Federal Regulations
(CFR), Título 49, §§ 831.5 e 1131. Nos
EUA, os casos que ensejam persecução penal normalmente limitam-se àqueles em
que se verificam condutas dolosas.
[11]
Na União Européia, a norma 996/2010 da Comissão Européia também trata da
assistência a vítimas e seus parentes, assim como do acesso destes ao
procedimento investigativo.
2 comentários:
Parabens Paulo pelo excelente texto!
O que me apaixona na aviação é o fato de estar sempre aprendendo. Pessoas como você servem de inspiração para toda uma geração. Abraços, André Lago
Resposta do paulo Calazans:
"André, agradeço a imensa gentileza. De fato, vc tem razão: temos todos muito a aprender, até porque os desafios e questões da nossa indústria vão ficando cada vez mais complexos; e os desafios, cada vez maiores. Um grande abraço, Paulo""
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