11.5.15

O Sistema de Chicago – Parte I

por Paulo M. Calazans

"ICAO, IATA, Anexos, Docs 8168, 4444, SARPs etc.  Lidamos com estas siglas todos os dias: Mas, o que elas significam para os “operadores” da aviação?  Em que contexto se inserem? Seu cumprimento é obrigatório? A ICAO tem “leis”?  Uma melhor compreensão do sistema de forma contextual serve para que se possa ter uma perspectiva mais abrangente da aviação como um todo, ou melhor, para empregar um termo hoje em voga no nosso meio, situation awareness.

Como se sabe, o “Sistema de Chicago” foi criado em 1944, ao fim da 2ª Guerra Mundial[1].  Dezenas de representantes de países se reuniram com o fim de tentar estabelecer uma nova estrutura normativa internacional para a aviação civil.  As sessões de trabalho se deram no famoso hotel Stevens, em Chicago.  E, ao fim, representantes de 52 Estados (países) assinaram a “Convenção de Chicago”, que, entre outras providências, instituiu a ICAO (OACI - Organização de Aviação Civil Internacional).

Sessão Plenária Final – 7 dez 1944 – Hotel Stevens, Chicago

A ICAO é uma das agências especializadas das Nações Unidas (como a OIT, a FAO, a UNESCO etc.).  Embora a ICAO tenha sido criada para aprimorar o legado deixado por sua precursora (ICAN – 1919) no que diz respeito a questões como uso do espaço aéreo, regras do ar, certificação de tripulantes e regitro de aeronaves, sua principal razão de ser (e da Convenção) foi mesmo o gigantesco aumento de circulação comercial de aeronaves observado durante os momentos finais da guerra, e que naturalmente trouxe inúmeros novos desafios econômicos e políticos. 

Não à toa, questões como sobrevoo de aeronaves sobre território estrangeiro, soberania dos países, espaço aéreo e, principalmente, direitos de tráfego (liberdades do ar) ocuparam os primeiros artigos da Convenção de ICAO.

As chamadas liberdades do ar foram assentadas sobre bases sólidas de interesses recíprocos das nações, comerciais e políticos, para o tráfego internacional.  E foram assim denominadas:

1ª:  Direito de uma aeronave de um país[2] sobrevoar o território de outro sem pousar.

2ª. Direito de uma aeronave de um país pousar no território de outro para fins não-comerciais (abastecimento, pane etc.)

3ª. Direito de uma aeronave proveniente de seu país pousar e desembarcar passageiros ou carga comerciais em outro país.

4ª. Direito de uma aeronave embarcar e decolar, em outro país, com passageiros ou carga comerciais de volta a seu país.

5ª. É a chamada cabotagem; direito de uma aeronave de um país embarcar ou desembarcar, no território de outro país, passageiros com destino a ou provenientes de um terceiro país[3].


E foi aqui que a dificuldade começou.  Dada a enorme relevância e peso dos interesses comerciais envolvidos, não houve um acordo abrangente entre os Estados contratantes da Convenção (hoje, mais de 190 países) quanto ao exercício das liberdades.  Assim, em seguida, foi criado o IASTA[4] (International Air Service Transit Agreement), que conta hoje com a adesão de cerca de 130 países, e faculta o uso das 1ª e 2ª liberdades para voos internacionais regulares (scheduled international air services) para as empresas dos países participantes.

Com relação às 3ª, 4ª e 5ª liberdades, após a Convenção, os países passaram a celebrar  acordos bilaterais (ou multilaterais) entre si, batizados de BASAs (Bilateral Air Service Agreements), hoje ultrapassando os 5 mil existentes.  Entre eles, os famosos Bermuda I e II, que regulavam o uso das liberdades na maior eixo aéreo comercial do mundo, EUA-países europeus até 2007, e hoje substituídos pelo Open Skies Agreement, celebrado em março de 2007, entre os EUA e o bloco da Comunidade Europeia.

Por último, vale lembrar que a Convenção de Chicago é aplicável apenas a aeronaves civis, não sendo aplicável a aeronaves públicas (art. 3, a), tais quais aeronaves militares, de polícia e aduana (art. 3, b).  Também são consideradas aeronaves públicas aquelas dedicadas a transporte exclusivo de chefes de Estado ou chefes de Governo[5].  Mas, o que isto quer dizer, que estas aeronaves não cumprem as regras da ICAO? Na verdade, estas aeronaves se submetem a regras gerais de direito internacional, especialmente as que dizem respeito à soberania, muito embora, na prática, adotem as regras da ICAO para tornar sua operação internacional viável (e.g., regras do ar, planos de voo etc.).

O fato de a Convenção não se aplicar a aeronaves públicas, assim como o fato de nem todos os países terem assinado a Convenção explica o porquê de alguns voos requerem “overflight permit” ou “clearance”.  No caso de aeronaves de Estado, isto ocorre sempre, muito embora alguns acordos as concedam de forma permanente.  E, da mesma forma, para voos regulares, quando efetuam sobrevoo de país não-participante da IASTA.

Algumas desmistificações:

- “Plano de voo” nada tem a ver com a “autorização” para uso das liberdades de tráfego acima comentadas, sobrevoo de outros países etc.  No Brasil, chamamos, inapropriadamente, de “autorização” a permissão dada pelos controladores para uma aeronave “ocupar determinada fatia” do espaço aéreo para efeitos de coordenação apenas.  Isto significa que, embora se tenha um plano de voo “autorizado”, não significa que a entrada num outro país não possa ser recusada a posteriori.

-  É incorreto falar-se em “leis da ICAO”.  A ICAO é uma agência da ONU, e seu texto normativo é a Convenção e seus anexos.  E a Convenção tampouco é lei.  Ela depende de “internalização” de suas normas pelo Legislativo ou Executivo (ou ambos) de cada país.  Ou seja, por exemplo, a Convenção de Chicago só se aplica no Brasil porque foi editado o Decreto 21.713/46 (na ocasião, pelo Presidente, na forma da nossa Constituição então vigente).  Já os detalhamentos normativos (SARPS e DOCs da ICAO) são normalmente feitos pelos órgãos regulatórios de aviação civil (ANAC, FAA, EASA etc.), que recebem delegação para tal, mediante normas internas de caráter administrativo (no nosso caso, RBHAs e RBACs, além de portarias, circulares etc.).

- Aeronave não é extensão do território de seu país de origem.  Portanto, a lei aplicável a bordo depende de uma série de regras de conexão do direito internacional.  No caso de algumas aeronaves públicas, há imunidade de jurisdição, como as militares, e as que levam exclusivamente Chefes de Estado, Chefes de Governo, Ministros de Relações Exteriores e suas comitivas etc.

Na sequência sobre o Sistema de Chicago, já no próximo texto, abordaremos os Anexos da ICAO, Protocolos contra Atos Ilícitos contra a Aviação, Espaço aéreo e lei aplicável nas aeronaves ADIZ etc."

PAULO M. CALAZANS


* -  Comandante de A-310.  Foi piloto nas empresas Varig (B-727, B-744, DC-10, B-767, B-733), Eva Air (MD-11), Ryanair (B-737-800) e atualmente se encontra no Qatar. Possui cerca de 14 mil horas de voo. É advogado e sócio do Escritório Leonardo Lobo Advogados, no Rio de Janeiro.  Bacharel em Direito e Mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC/RJ, e Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela UCAM/RJ.  Foi professor do Departamento de Direito da PUC/RJ e estagiário concursado no Ministério Público do Trabalho. 46 anos, casado, carioca e tricolor.






[1] É interessante observar que a Convenção de Chicago teve origem antes mesmo da própria criação das Nações Unidas (ONU), que só ocorreria meses depois, em São Francisco.
[2] O termo correto, tecnicamente, é Estado.  Usou-se, aqui, indistintamente, os termos Estado e País como sinônimos, embora sejam conceitos diferentes.
[3] Fala-se hoje, ainda, das liberdades 6ª a 9ª, mas não contempladas no texto da Convenção.
[4] DOC 7500 da ICAO
[5] Entende-se, em geral, que o critério aplicável na distinção civil x pública é funcional, isto é, o real propósito da operação da aeronave, se para fins civis ou de Estado.  Cf. Giemulla, Elmar; Weber, Ludwig (eds.), International Aviation and EU Law. The Netherlands: Kluwer Law International, 2011, p. 51 e segs.

3 comentários:

Unknown disse...

Muito bom. Parabéns.

Tito Walker disse...

Excelente aula, com invejáveis didática e nível de conhecimento. Aguardamos a parte 2 e outros temas específicos de quem conhece e pratica a Aviação Civil. Infelizmente, exilado em consequência de política de governo e, não, de Estado. Indivíduos desta cepa fazem falta no país em que tanto necessitamos do Saber.

Rafael Matera disse...

Resposta do Paulo ao Tito Walker:

"Caro Tito,

Obrigado pelas gentis palavras. Mérito maior ainda é do Rafael, que vem nos proporcionando esse meio original para trocarmos ideias e aprendermos um pouco mais, uns com os outros.

Com a estima e o apreço de sempre,

Paulo"